Se posso (tenho o direito de) tomar uma pessoa por tema, por objeto do meu trabalho, essa mesma pessoa deve poder (ter o direito de) ser sujeito da mesma ação.

segunda-feira, 21 de dezembro de 2009

Podemos nos engajar em torno de conceitos – programas – plataformas estéticas, sociais e/ou políticas. Toda plataforma – mesmo quando 'apenas estética' serve, conscientemente, ou não, a um fim político, se entendermos política enquanto disputa de interesses de segmentos, setores, corporações ou classes sociais. Tal disputa acontece também, e privilegiadamente, no campo da linguagem. Através do discurso, das elaborações sobre a linguagem, sustentam-se, legitimam-se e universalizam-se valores e visões de mundo.

Casal na Estação da Luz, 2013



 

         


A pesquisa sobre as possibilidades do gesso enquanto matriz de impressão é componente do projeto INCLUSO, que pretende desenvolver uma discussão em torno dos aspectos e desdobramentos da “exclusão social” como um modo de inclusão: a inclusão pelo desprovimento, pela miséria, uma vez que nada escapa à lógica da organização da produção que tem como objetivo final apenas o lucro e a concentração de riquezas.
Desde o ano de 2001, quando deixei a faculdade de Direito, as pesquisas sobre as possibilidades do gesso enquanto matriz de impressão vêm acontecendo. Muitas experiências e cerca de 3 centenas dessas gravuras foram feitas até então. Algumas compõem acervos de museus e coleções particulares.
Tive contato com outras técnicas de gravura, em especial a xilogravura. Na série aqui apresentada, INCLUSO, as matrizes de gesso são usadas repetidamente mas sempre em novos contextos criados com o auxílio da pintura e do desenho. Ou seja, uma mesma matriz é usada na composição de várias e diferentes imagens.Tais gravuras não podem ser numeradas da forma tradicional: são únicas embora carreguem a impressão das mesmas matrizes. Na verdade, trata-se de uma experiência que inverte uma certa lógica da ética da gravura tradicional.
Neste meu trabalho, no lugar da preocupação central recair na possibilidade de multiplicação da obra de arte, para que muitos possam dela se apropriar (louvável preocupação dos Modernistas), a tônica recai exatamente na possibilidade de transformar o maior número possível de pessoas em sujeitos da arte, promover o direito de expressão, o direito à fala – o primeiro dos direitos capaz de transformar um sujeito em cidadão. Por outro lado, nos tempos atuais, quando tudo se transformou cruelmente em mercadoria, não é mais suficiente a grande preocupação dos Modernistas (revolucionária em seu tempo), de garantir a multiplicidade de fruidores do trabalho artístico, como não é mais suficiente, transformar os mais pobres e miseráveis em assunto dos seus trabalhos, pautando assim a conversação do mundo sobre suas existências. É necessário um passo a mais: é preciso exatamente que criemos os instrumentos para que essa maioria do planeta se expresse e transmita sua saga.



textos críticos sobre o trabalho      








A Gravura de Rogério Mourtada

Desde as bombas atômicas jogadas pelo governo Harry Truman (EUA) em Hiroxima e Nagasaki (6 e 9 de agosto de 1945), vivemos num mundo onde não é mais possível o escândalo – como, antes, já disse André Breton.

Há poucos meses, um crítico de arte, durante uma descuidada passadinha pela repartição onde está lotado, deparou por acaso com um trabalho de Rogério Mourtada. Esbravejou:

"Gravura em gesso não existe. Isto é um escândalo. Tirem isto da minha frente".

O trabalho foi retirado da parede. Negou as evidências: estava frente a uma gravura feita a partir de uma matriz de gesso e negava que existissem gravuras em gesso. Da mesma forma até as três primeiras décadas do século passado, não existiam gravuras em matrizes de linóleo. Picasso fez sua série de Touradas recortando linóleo. Então, elas passaram a existir.

Criar constitui parte inalienável do métier do artista – inclusive (e às vezes até sobretudo) no campo das técnicas, dos materiais.

O trabalho de Rogério Mourtada – um jovem de 25 anos – sustenta-se sobre três pilares, sendo que o último deles diferencia este artista não apenas dos gravadores seus contemporâneos, mas da própria História da gravura desenvolvida na (e a partir da) Europa. [1]

Primeiro, a coerência entre a técnica, o material escolhido, e a temática que desenvolve.

Segundo, matrizes em gesso – material de pouca resistência para a impressão precisa de um mesmo entalhe diversas vezes.

Terceiro (e talvez o mais desconcertante para muitos), a utilização dessas matrizes em sentido diverso daquele tradicionalmente assumido pela gravura – de multiplicar um mesmo trabalho, de reproduzir um mesmo discurso plástico/gráfico fechado.

Rogério transforma as impressões de suas matrizes de gesso em "palavras", "ideogramas", "pictogramas", "signos", "anotações mais ou menos breves" que – utilizadas sempre em novos contextos criados com o auxílio da pintura e do desenho; de pontos, linhas e planos; de massas compactas e transparências – se acoplam, se misturam, se baralham e se reorganizam criando um novo, mantida a visibilidade/identidade original da impressão que permanece identificável, sendo (em) outra coisa.

É bem verdade que, para não irmos muito longe, aqui mesmo no interior de São Paulo, há aproximadamente 60 anos, Cândido Portinari já coloria a lápis de cor pelo menos sua série de xilos sobre o Quixote. Mas este procedimento ainda estava ancorado de certo modo na tradição das gravuras aquareladas, comuns sobretudo no século 19.

Não é menos verdade também que os britânicos Jake e Dinos Chapman, há poucas semanas, surpreenderam a crítica internacional com suas intervenções em aquarela sobre uma tiragem completa de 80 gravuras originais do espanhol Goya, que compõem a série "Desastres da Guerra" (1810-1815). No entanto, neste caso, apesar da preciosidade do original escolhido, em termos de procedimento criativo – em que pese o talento, a ousadia e a pertinência da iniciativa para a denúncia do massacre inútil das guerras – esses súditos de SM Elizabeth II pouco se afastaram dos bigodes colocados por Duchamps sobre uma reprodução da Monalisa de Leonardo da Vinci.

É interessante perceber que, apesar dos Chapman serem naturais da Grã-Bretanha e Goya da Espanha – países cujos Governos dos atuais primeiros-ministros (Blair e Aznar) apoiaram as intervenções terroristas do Governo Bush contra o Afeganistão e o Iraque, alguns críticos e intelectuais fingem esquecer essa "coincidência", e se manifestam de maneira – esta sim – bizarra, frente ao último trabalho dos dois irmãos. Para o brasileiro Ferreira Gullar, por exemplo, a criação de Jake e Dinos "É uma espécie de terrorismo cultural [que], como arte, não tem importância nenhuma". Gullar permanece coerente: desde sempre e até hoje ele proclama que o endurecimento político levado ao limite pela Ditadura implantada no Brasil em 1964 se deveu aos grupos da resistência que pegaram em armas para enfrentar o regime, os quais ele classifica de terroristas – maneira malajambrada que esconde e justifica sua capitulação política (e do seu partido) frente ao golpe e ao subseqüente terror de Estado.

Os condenados à morte

O tema de Rogério é o mundo da exclusão. Os excluídos pela miséria, ou pelos padrões estabelecidos de normalidade – os diferentes. Mas diferentes também miseráveis.

Numa linguagem menos glamurizada: o tema de Rogério são os moradores-de-rua, pivetes, prostitutas-meninas, prostitutas em geral, adolescentes grávidas, vítimas do crime organizado e da polícia, idosos, mendigos, homossexuais, xifópagos, portadores das mais diversas deficiências físicas e mentais, dependentes químicos, índios, negros e mestiços – todos aqueles para os quais os neoliberais garantem não haver riqueza suficiente no mundo. Todos aqueles que, segundo essa doutrina, estão fora dos 30% a cujo bem estar dirigem os esforços de suas políticas econômicas. Os condenados à morte.

Mourtada os conhece bem. Não apenas tanto quanto nós que os vemos (muitas vezes sem enxergar) a cada esquina. Durante cerca de um ano, ele trabalhou ministrando oficinas de artes plásticas para crianças e adolescentes de rua, num projeto desenvolvido por uma organização não-governamental de Campinas (SP). Ali a regra era a de muitos dos seus alunos desaparecem das oficinas, para em seguida serem encontrados assassinados por grupos de extermínio, por outros pequenos bandidos, ou simplesmente recolhidos em casas correcionais ou prisões.

Antes, já fizera uma incursão em experiências com a técnica do Teatro do Oprimido, de Augusto Boal. Nesse roteiro Mourtada – que abandona a Faculdade de Direito aos 21 anos para se tornar artista plástico – seleciona materiais, técnicas e constrói seu programa de trabalho e linguagem.

Material democrático

O gesso surge da necessidade não apenas de um material acessível, barato, onde gravar uma matriz, mas de um material dúctil para cuja gravação possam ser criadas pelo próprio artista ferramentas a partir de arames, metais variados, velhas lâminas e até madeira. A escolha do suporte (cartão duplex preto) segue a mesma diretriz, bem como a definição do guache enquanto tinta de impressão, desenho e pintura.

Para que todos os que queiram possam gravar.

"Se posso tomar um homem por tema, esse mesmo homem tem o direito de ser sujeito da mesma ação que desenvolvo quando o tomo por objeto. E esse não é um problema apenas de distantes secretarias de educação ou de cultura, ou de remotos ministérios", diz

Parece-nos esta, a ética fundamental que substituirá/aprofundará aquela dos bons gravadores modernistas, que se ancorava antes de tudo no acesso e na apropriação pública do múltiplo/igual.

Será no quadro da ética que estabeleceu para si, que Rogério balizará as experiências a que dará curso, garantindo-lhes e definindo-lhes o conteúdo filosófico e os primeiros contornos da racionalidade que perseguirá.

Por outro lado, aos poucos – pois nada acontece de uma única vez – o autor vai percorrendo as diversas iconografias construídas em busca de firmar uma nova forma, uma nova figura. Aqui um Curupira ou um Saci como ponto de partida. Totens africanos cedem lugar a contornos de Botticelli que depois são substituídos por elementos com raiz em culturas ameríndias pré-colombianas. Formas orgânicas e, de repente, a intervenção de elementos geometrizantes. A pincelada construída, organizada dá espaço ao gestual. Mas as incisões precisas a ponta-seca, quando tudo ameaça descambar definitivamente para o intuitivo e/ou espontâneo, como um "piston de gafieira", bota as coisas no lugar: o que está fora não entra e o que está dentro não sai. O que está em cima não voa, o que está embaixo não cai.

De qualquer modo, porém – e aqui reside outra importante grandeza do trabalho de Rogério – mesmo que seu tema sejam os condenados à morte, ao extermínio (e conseqüentemente à vala comum), seu programa exclui qualquer populismo, qualquer rebaixamento da linguagem plástica, qualquer miserabilismo. E é este compromisso que não apenas faz de Rogério um artista plástico, como confere ao seu objeto temático dignidade e força. Rogério recusa qualquer comiseração – antes, exige respeito aos personagens. No lugar do drama, o trágico.

Possível tendência

A profusão de elementos e texturas das matrizes originais vêm paulatinamente (ainda que não de modo linear) cedendo espaço a um desenho e composição mais enxutos. Mais que isto: quando aquelas primeiras matrizes voltam a ser impressas depois de algum tempo, a ação do pincel toma o partido de atenuar os excessos.

As novas matrizes, as mais recentes, por sua vez, ganham a cada dia dimensões mais reduzidas com relação ao conjunto da composição, ainda que muitas vezes tenha sua impressão repetida diversas vezes no mesmo trabalho.

O preto do suporte, tão presente nos primeiros trabalhos, vai se tornando apenas pretexto para as diversas transparências do guache branco, que assume o primado do discurso plástico. Há uma clara intenção nisto tudo de busca de uma síntese maior. Mais ainda: revela-se uma preocupação cada vez maior com o olho do espectador, no sentido de conduzi-lo à informação plástica, à apreensão e diferenciação entre o essencial onde tema e linguagem se fundem, e o que é desdobramento ou acessório a essa fusão.

O processo de estudos que vem absorvendo o artista também nos dá alguns indicadores que, caso permaneçam, podem ajudar a configurar a tendência que tentamos discernir.

Juntamente com suas atividades acadêmicas (Rogério cursa Artes Visuais na Pontifícia Universidade Católica de Campinas – PUCC) ele persegue, por um lado, toda uma atividade de leitura e debate de textos na área da teoria e da História da Arte. Por outro, desenvolve um processo permanente de reflexão e discussão de cada um dos seus trabalhos – sistematizando o seu saber prático, desenvolvendo elementos da sua técnica e da linguagem plástica (o que lhe tem garantido segurança para a criação de novos recursos). Intuitivos num primeiro momento, alguns procedimentos vão se transformando e passando a integrar a construção uma nova gramática.

Ou seja, a tendência geral de seu trabalho parece apontar – pelo menos neste momento – para uma construção onde, intencional e conscientemente, o autor exacerba uma tensão cada vez mais acirrada entre o intuitivo e o racional. E esse diálogo tenso e permanente razão/intuição – do nosso ponto de vista – é indispensável a uma grande obra.

Alipio Freire
2003



[1] Observamos que, pelo menos os canela, os apinajé e os xavante pré-cabralinos já usavam diversas matrizes em madeira cuidadosa e caprichosamente entalhada ou superfícies originadas de cortes de frutos para imprimir, com tinta, desenhos rituais no corpo ou em vestes e utensílios. Embora a matriz produzisse sempre um mesmo motivo, este se compunha e se repetia diferentemente na pele ou nos tecidos. Carimbos?



Sobre a Arte de Mourtada


Apresenta-se, aqui, um universo visual em branco e preto. Um elogio em alto contraste à contemporaneidade da imagem. São gravura-pinturas-desenhos da atual lavra de um artista plástico representante da novíssima geração da arte brasileira: Rogério Mourtada.



Exclusiva expressividade sobre papel. Que orienta uma intencionalidade poética que faz dialogar os valore de matriz, de forma e de linha . Melhor definido! Os elementos figurais antropomórficos são dispostos numa genuína técnica de sulcagem formal – que impressiona recortes superficiais de mantas de gesso.



Surge, antes, a forma gravada. O espaço absolutamente negro do suporte apreende amplas e brancas pinceladas interessadas na abertura de campos pictóricos dispostos à justa convivência entre as figuras e os seus neutros cenários. Dos efeitos de montagem e de repetição surge, agora, a imagem pintada. Num procedimento que impões sutis intervenções compositivas, o artista age sob um processo de refinada des-pintura. Diante da umidade das alvas tintas – gravadas e pintadas – reinventa a linha. Surge, depois, o desenho.



Invertendo a técnica para melhor dimensionar a expressão, podemos indicar que o seus dsenhos-pinturas-gravuras determinam um movimentos criativo que expõe múltiplas densidades materiais e proliferantes discursos visuais. Tudo, contudo, na singularidade de ser artista!



Prof. Doutor Marcos Rizolli
(Professor Universitário; Pesquisador em Linguagem Visual;
Crítico de Arte; Curador Independente)
2004

A Arte de Rogério Mourtada


É muito gratificante quando encontramos talentos promissores no meio artístico. Rogério Mourtada é um desses poucos notáveis. Conheci sua produção artística há pouco tempo, mas o suficiente para perceber que é um artista excepcional. Claro que os anos vão se incumbir de comprovar esta minha afirmação. As obras realizadas até o momento já o credenciam, sem dúvida, como uma expoente revelação.



O modo autodidata de apreciar a cultura de seu meio revela um "olhar" ávido em busca de informações que possam enriquecer o seu repertório artístico. Concentra de modo especial a sua vocação para a arte sobre papel, originada por meio de matrizes de gesso. Compõe sua obra usando recursos da gravura, às vezes acoplando intervenções na cópia original, possibilitando um resultado misto de gravura e pintura.



As obras são geradas pelas matrizes, representando um temperamento regado à liberdade e autonomia, que não se limita aos moldes da ética da gravura. No momento , isso não lhe interessa nem o perturba. Para o artista, o objetivo principal é o efeito da obra resultante pelo uso da matriz criada e não pela possibilidade de reprodução da imagem. Quase sempre suas gravuras são cópias únicas.



Especialmente por causa do modo singular em conceber suas obras, Mourtada atinge um ápice técnico, conseguindo resultados fascinantes, tanto ao usar têmpera clara sobre papel escuro, quanto o inverso.



Pelo expressivo trabalho espontâneo, Rogério tramita o puro gosto de expressar, um exercício que enaltece as formas e feições, mesclando ternura e mistério nas personagens criadas, combinando a figuração adensada com a leveza organizacional dos elementos.



Nas palavras de Stephen Naschmanovitch a "obra de arte não é concebida na mente e então , numa fase distinta, executada pela mão. A mão nos surpreende, cria e resolve problemas por sua própria conta. Muitas vezes, enigmas que obstruem nosso cérebro são resolvidos com facilidade, inconscientemente, pela mão".



Assim vejo a capacidade criativa de Rogério Mourtada, que sabe muito bem se expressar intuitivamente, (re)construindo o seu e nosso mundo, abalizado num improviso característico dos grandes gênios.



Paulo Cheida Sans
2004


Mourtada's Talent            


Based on the assumption that art is not a subject but form and concept, it'll be fertile to observe Mourtada's technique. I am not talking about a formalist artist because that would hide his academic side. More than that, contemplating his work is a unique experience which deconstructs the main values of the engraving, painting or drawing. The textures, the depth, the game between black and white, the environment, all these elements have strong parallel with the Argentinean Guilllermo Kuitca's painting. The way he combines and treats his image, using games of planes, deconstructs the immediate senses. He never abandons the invitation to the harmony, he actually reinforces it. In this surface there's also the sense. Mourtada engraves with plaster his archetypes inviting to participate. His work evocates the memory so as to subsidize a narrative whose core is the collectivity destiny. The artist is intimately connected to this destiny and worried with its conditions. Nevertheless, before denouncing with falsely daring plastic constructions, he prefers to wound us with these pictures which take us to a common past, to a fraternal humanity, almost utopian.



E. Dionísio
2005

*a versão original deste texto, em português, será disponibilizada assim que possível.